domingo, 21 de junho de 2015

Não escrevo, não escreverei




Continuo e continuarei a escrever fugindo à maior ofensa dos últimos 100 anos à Língua Portuguesa, nossa Pátria e porto de abrigo. Escrever como nos obriga o tristemente célebre acordo ortográfico é escrever mau Português, é curvar a espinha aos países que nem se deram ao trabalho de promulgar essa coisa, é ficar reféns de interesses obscuros e manhosos, desrespeitando a língua e, consequentemente, quem a escreve de acordo com a correcção que ela merece. O que farão os alunos que foram apanhados a meio deste processo? Estarão todos os livros que comprei (e que escrevi) obsoletos? Mal escritos? Fossilizados? Bem como tudo o que se escreveu até agora, de forma correcta e coerente com as origens latinas e gregas do português? Então somos nós que nos temos de adaptar à grafia dos outros países de língua portuguesa, ex-colónias que já nada têm a ver connosco? São eles agora os nossos colonizadores? Era o que mais faltava!
Não. Não escrevo. Não escreverei. Fui ensinado por grandes professores a não escrever com erros ortográficos. Prendam-me, se quiserem.


In "O Montemorense", Junho de 2015

domingo, 14 de junho de 2015

Mentirosos de alto nível

           

       
       Se a escrita é uma forma de liberdade, a escrita ficcional é uma forma superior de liberdade. Escrever ficção, sejam romances, novelas ou contos, é mentir… com classe. É inventar realidades, pessoas, sentimentos e espaços, espaço interiores e exteriores, de tal forma que todos os que lêem acabam por acreditar que o imaginado é real, mais real do que a vida. É a célebre “suspension of disbelief” de Samuel Coleridge ou, de uma forma mais ou menos aproximada, “a suspensão voluntária da descrença". Isto é, recusamo-nos a não acreditar.
          São estas algumas das premissas que suportam os primeiros momentos num contexto de oficina de escrita criativa. Outras motivações que, nessas sessões, nos levam a orientar a imaginação e a técnica de jovens candidatos a escritores, é “colocá-los” no lado de dentro do texto e perceber assim, sob a perspectiva do criador, como funciona a sua “criatura”, chamemos-lhe texto, neste caso concreto, mas que poderia ser uma pintura, uma escultura, uma foto ou qualquer outra manifestação artística.
        Pois, neste final de ano lectivo, há, para além da habitual febre das notas, dos exames e das angústias inerentes e legítimas, um facto incontornável e, por isso mesmo, digno de anúncio. O Agrupamento de Escolas de Montemor-o-Novo vai publicar uma edição de contos originais, da autoria de dois alunos que já começaram a dar que falar nesta área. Joaquim Quadrado e Mateus Lopes Bregas, agora a darem os primeiros passos numa área ingrata, difícil e demasiado banalizada, merecem o meu público agradecimento pelo esforço (isso da inspiração é um mito absurdo), pela paciência, pelo talento e pela capacidade manifestada em mentir tanto em tão pouco tempo.

Continuamos a espalhar mentiras logo em Setembro? Cá por mim…


                 In "O Montemorense", Junho 2015

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Araújo, João Araújo


Fala-se muito de José Sócrates mas não se dá importância a um dos advogados de defesa que tem dado a cara pelo acusado e que tem dado também mostras de uma enorme falta de ética e correcção, tanto em relação ao seu constituinte como perante os jornalistas que procuram relatar as ocorrências sempre que tais se justifiquem. João Araújo tem mostrado um profundo desprezo pelos profissionais da comunicação com respostas e remoques que ficam a dever muitíssimo à civilidade, à cortesia e ao respeito. Para não falar nas suas reacções às decisões do juiz e do procurador que, certas ou erradas, mereciam referências sem o show-off a que Araújo já nos habituou. Se Sócrates (quer seja ou não culpado das acusações) tem sido um mau exemplo para o país, a sua defesa, com ou sem razão, não o tem sido menos. Se eu fosse um advogado acabadinho de sair do exame da Ordem, iria apagar da memória o que aquele sénior nos tem ensinado nos tempos mais recentes.

In "O Montemorense", Junho, 2015

terça-feira, 26 de maio de 2015

Final de etapa



As aventuras de final de ano lectivo repetem-se com a rapaziada a cumprir o calendário dos testes derradeiros, trabalhos, pesquisas e apresentações. E é igual também o grau de preocupação dos pais e encarregados de educação que querem legitimamente que os seus filhos passem de ano, progridam no conhecimento e, consequentemente, se preparem para o novo ano que vem já ali. Mas nem sempre as coisas são assim. Se há alunos que se dedicam ao trabalho com empenho e algum sacrifício, muitos, direi mesmo a maioria, usam da cultura residual que vão acumulando ao longo do tempo e fazem-na render o melhor possível, bastando para isso a sua assiduidade e a atenção nas aulas.

Num terceiro grupo, há os alunos que não querem mesmo passar de ano nem se preocupam em aumentar os seus conhecimentos, práticos e teóricos, recusando até a aprendizagem seja do que for. Não entendo por que motivo a lei continua a obrigar estes alunos a esta violência diária que acaba por não ser nem compensadora nem motivadora para os restantes agentes de ensino. Há leis que deviam mudar. Ou então que se mudem as vontades e que esses alunos aproveitem ao máximo as oportunidades que lhes são dadas. Um dia poderá ser tarde.


In "O Montemorense" , 20 de Maio de 2015

Foto: Henrique Gabriel de Carvalho

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Peregrinos


Continuo a admirar profundamente a força que, todos os anos por esta altura, move os peregrinos em direcção ao Santuário de Fátima. Não sei se a fé, se a caridade, se a expiação dos seus pecados, se o cumprimento de promessas sagradas e impossíveis de desfazer. Seja o que for, sentimo-nos, decerto, um pouco como eles, não em direcção a Fátima, mas em direcção ao ponto último da nossa passagem por aqui. E um dia, depois desta viagem, mais longa para uns, mais curta para outros, mas quase sempre acidentada, chegamos finalmente ao nosso destino. Quando isso acontecer, que tenhamos deixado todas as contas pagas e os nossos filhos e netos encaminhados. E que os peregrinos de Fátima tenham o devido reconhecimento das mais altas esferas da hierarquia da Igreja: de Deus e dos Seus Auxiliares mais próximos.  

In "O Montemorense", 20 de Maio de 2015

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Pedro e António






Pedro e António. Personagens históricas? Ainda não. Muito tempo há-de passar até que a História se debruce de forma objectiva sobre eles e faça uma releitura dos seus actos e das suas omissões. Se Pedro e António afirmam categórica e indesmentivelmente que sabem governar Portugal, sabemos que isso não passa de uma cantiga já com barbas, que todos os políticos mais ambiciosos cantam até lhes doer a voz. Não sei se Pedro foi um governante exemplar. Sei aquilo que vejo e ouço, aquilo que não vejo e não ouço. Com a política de aumento de impostos e a diminuição de rendimentos para o Estado tapar os roubos que os de colarinho branco fizeram, parte da população do nosso país entrou no limiar da pobreza. E veio tudo em catarata: o encerramento de fábricas e restaurantes, a falência do pequeno comércio, o desemprego, a emigração de mentes e braços de qualidade mas desprezados.
A Ditadura do outro António era visível e impressionante. A de hoje remete-nos para um silêncio envergonhado porque só quem tem dinheiro pode ser livre de falar. Por isso, não sei se Pedro, se António, se outro qualquer tem capacidade, talento e generosidade para nos devolver a confiança perdida, para nos mostrar que Portugal ainda é possível, tanto para nós como para os nossos filhos e netos a quem deixámos, involuntariamente, uma herança armadilhada, um abismo que os vai começar a sugar logo que decidam “fazer pela vida”.
O erro que se vai repetir em breve é o mesmo de sempre: é o de permitir esta eterna alternância, entre o laranja e o rosa (com uns laivos de azul), este agora-tu-agora-eu-depois-tu-depois-eu que tem, comprovadamente, levado os portugueses a uma existência pouco digna.


In "O Montemorense", 20 de Maio, 2015


quinta-feira, 16 de abril de 2015

IV Olimpíadas Nacionais de Filosofia em Montemor-o-Novo




A Escola Secundária do Agrupamento de Escolas de Montemor-o-Novo vai acolher, nos próximos dias 17 e 18 de Abril, o evento das IV Olimpíadas Nacionais de Filosofia. O objectivo será seleccionar dois alunos que representarão Portugal nas Olimpíadas Internacionais de Filosofia, que este ano se realizarão em Tartu, na Estónia, no próximo mês de maio.

A escola de Montemor receberá 75 alunos oriundos de 35 escolas, de norte a sul do país. O pretexto é a Filosofia ou o pensar filosófico, o objectivo é aprender a pensar em grupo, partilhando pontos de vista e convivendo de forma saudável.
Montemor vai ser, durante dois dias, o centro nevrálgico do Pensamento e da Filosofia. A escola e a cidade já mereciam uns dias assim!! A minha colega Cristina Ferreira, professora de Filosofia, está aos comandos desta grande "empreitada"!

quarta-feira, 15 de abril de 2015

PET? What for?


Andam para aí uns exames que me causam alguma espécie. Não me parece muito lógico que alunos da disciplina de Inglês das escolas de Portugal se submetam a um exame para aferir do seu grau de competência Oral e Escrito naquela língua. Sinto que tanto a empresa organizadora da coisa – o Instituto Cambridge – como o Estado português que se lhe associou estão a passar, deliberadamente, um atestado de incompetência aos professores de Inglês deste país e, isso, por muitas voltas que lhe dê, não consigo admitir. Mais: desde quando precisam os professores de Inglês de se submeter a uma prova, supervisionada pelo Instituto Cambridge, para atestar da sua competência para corrigir esses tais exames que me andam a causar espécie? Isto acontece no meu país, porque as instâncias que me são hierarquicamente superiores o fomentam e permitem. Cá para mim, há aqui qualquer história mal contada. Ou, então, estão todos a ficar completamente insanos.
Além do mais, não vejo utilidade num diploma a certificar essas competências, se os alunos, (sobretudo os de 9.º ano) ainda têm de passar mais algum tempo na escola até poderem aceder a um emprego ou à universidade, tornando-se aqui, de facto, importante sabermos o seu grau de proficiência… Até lá, os diplomas pagos pelos pais ficam fora de prazo e os bolsos, dos pais, ficam um bocadinho mais vazios. Gostava de reflectir sobre a posição dos sindicatos em relação a esta questão (se é que a têm) e, principalmente, saber qual é o papel da Associação Portuguesa de Professores de Inglês no meio de tudo isto. Em suma: quem é que anda a ganhar dinheiro à custa dos nossos alunos e porquê. Vamos continuar assim? Vamos? Ninguém é Charlie?


In O Montemorense, Abril 2015

quarta-feira, 25 de março de 2015

Alegre convívio



Montemor é uma pequena aldeia. Já o sabemos. Mas é uma grande metrópole quando pensamos na dificuldade que existe em estarmos, mais amiúde, com os amigos ou com os familiares. É a falta de tempo. É o cansaço depois de um dia de trabalho. É outra coisa qualquer. O motivo é sempre válido e aceite tacitamente por todos.
Contudo, para além das missas de Domingo ou de uma ou outra iniciativa cultural ou desportiva que nos junta, quase por acaso, existem outros momentos em que se aproveita para matar saudades, para pôr as novidades em dia e combinar, ainda que sem grande força anímica, uma jantarada, um passeio ou apenas um café para descontrair. Esses momentos são... os funerais.
Pois é: é aí que damos de caras com quem não conversávamos havia muito tempo. E, sem qualquer desrespeito para com o falecido ou a família, fala-se de tudo um pouco, desde o tempo, até ao primo que se alistou na marinha para fugir ao desemprego. Desde a conta da luz, à vizinha do segundo esquerdo que já vai no quarto casamento. Dos assaltos de que somos vítimas por causa dos banqueiros e de outros tubarões, ao nascimento do netinho da vizinha Ercília que tem um marido de ouro só que já não diz coisa com coisa. Durante uns bons minutos (por vezes umas boas horas) o cenário do velório esbate-se e fica lá muito longe, com o espaço ocupado pelas memórias, pelas novidades, pela alegria que reina entre os amigos que há muito não se viam. E passam-se alguns momentos... agradáveis.
E à despedida? Bom, nessa altura, lá vem a velha frase: “Para funerais temos sempre de arranjar tempo. Para fazermos um petisco lá em casa... é uma carga de trabalhos para todos estarem disponíveis”. “É verdade, é verdade! Temos de combinar qualquer coisa!”

E pronto. Damos um abraço e até qualquer dia que tenho pressa. Ou até ao próximo funeral... desde que não seja o nosso.

sábado, 21 de março de 2015

Querido Balú:


     

       É a primeira vez que escrevo uma carta a um cão. Pode ser sintoma de caquetismo precoce, pode ser um pretexto para um exercício literário diferente ou, quem sabe, será tão somente uma manifestação de ternura em nome de todos os que, cá em casa, tal como eu, te consideram mais um membro da família.

      Tu não és um cão, sabias? És um gato persa, uma águia imperial, uma tartaruga de Madagáscar, um hamster de pêlo sedoso, um peixinho dourado. És um companheiro que nos recebe entusiasmado quando chegamos a casa, no final do dia. És um vigilante que desperta ao menor ruído e denuncias, com cuidado, quem se aproxima de nós. És um companheiro silencioso, sentimentalão, que nos acompanha nos bons e nos maus momentos. Que fica triste quando o pessoal anda mais abatido, que salta em direcção ao Sol ao sentir as energias positivas a circularem pela casa.
      Sabes quando podes estar connosco e quando deves ir para o teu canto, quando deves comer e quando deves esperar. E nem te aborreces com os truques meio circences que todos te obrigam a fazer. E os amigos dos meus filhos? São uma fonte de inspiração para ti! A tua alegria redobra quando eles por cá estão. Todos te mimam e respeitam como animal quase racional que és. E tu gostas, maroto!! Tu gostas!
      Mas chegou o momento de te revelar uma coisa. Um segredo que nunca partilhei contigo por vergonha, confesso. Aqui vai... com o meu pedido de desculpas: quando entraste cá em casa pela primeira vez, uma bolinha de pêlo, nos braços da Rosária, nunca imaginei que vinhas para ficar. Julgava que eras apena mais uma visita. Porque nunca concordei em alargar o nosso espaço a um canídeo. Cães em casa? Náááá´, era a resposta, sempre que insistiam. Na noite da tua chegada, e depois de perceber que não estavas de passagem, senti-me incomodado a princípio. Porque a minha opinião não tinha sido respeitada. Porque eras o resultado de um plano bem urdido pela família e pela Rosária, cúmplice desta espécie de desobediência civil. Mas foram breves os momentos de “incómodo”. Bastaram uns minutos para entender a ligação que começou a nascer entre nós os dois. Entre nós os cinco e tu.
      E foi um privilégio assistir à tua metamorfose: ao longo dos meses, adquiriste o perfil de uma esfinge, a coragem de um leão, a sensibilidade de um cavalo, a classe de uma pantera negra, o bom humor de quem está bem com a vida, o espírito brincalhão de uma criança de dois anos, a generosidade, enfim, de um verdadeiro labrador.
      
      Sei que podemos contar contigo e também sei que a casa ficará mais vazia quando um dia nos deixares... Que esse dia venha longe. Que o teu olhar pacífico e, por vezes, melancólico, que nos embebeda de ternura, repouse sobre nós por muitos anos. Se podíamos viver sem ti? Poder, podíamos. Mas não seria a mesma coisa.
      Quando um dia leres estas linhas (eu acredito que não falta muito para aprenderes a ler), saberás, preto no branco, que ficou registado para conhecimento do universo que, afinal, somos os seis uma família.
       Recebe umas festinhas em nome de todos.

In "O Montemorense", 20 de Março de 2015



sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Modas da minha terra






Somos um povo de modas. Festejou-se o 28 de Maio de 1926, com vivas à ditadura, porque diziam os iluminados que só uma ditadura (e, ainda por cima, militar) iria endireitar um país de rastos, com mais governos de borco do que o pasto das searas em finais de Agosto. Depois, deram-se vivas a um Salazar, que arranjava sempre maneira de se apresentar em praças a abarrotar de gente, porque ele era o salvador, o D. Sebastião, que tinha salvaguardado os valores da nação. Mais tarde, com um Estado Novo já moribundo, veio a moda Marcelista, do tal senhor cuja Primavera não passou de um sol morno… posto logo à nascença, que ele ainda andava muito pressionado pelos salazaristas da altura.
Em Abril, e em vários abris subsequentes, gritou-se de alma aberta a nova moda da Liberdade que usámos e esgotámos até quase a deixarmos desaparecer. Parecíamos crianças de volta de um brinquedo novo que foi ficando cada vez mais gasto, estragado, abandonado a um canto, sem conserto. Entretanto, houve outras modas: a da maioria silenciosa, no 28 de Setembro, a do 25 de Novembro, a do 11 de Março. Serenados os ânimos (mais ou menos) houve a moda dos sequestros na Assembleia da República (“Chateia-me ser sequestrado, pá”, dizia Pinheiro de Azevedo, deveras incomodado). Depois, houve a moda do campismo selvagem, a moda do Timor Lorosae, a moda da Comporta revisitada, a moda de irmos à pesca com iscos de borracha, a moda de se comer pão integral às refeições, a moda das caminhadas à noite para manter a forma, a moda dos ginásios, com o step, a aeróbica e os armários.
Hoje, novas modas se apresentam e se discutem. Outras cores, outros tons. Pensamentos ditos modernos que nos levam a aceitar, com a naturalidade possível, escondendo uma hipocrisia sufocada, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a adopção por casais homossexuais, a integração de crianças com necessidades especiais nas escolas, a mistura entre brancos, pretos, amarelos, louros, ruivos e azuis. Modas, digo eu, que vão e vêm com as mentalidades, com os tempos e com as influências que nos chegam das américas e dos brasis, das chinas e de outros confins do planeta, porque hoje moramos mesmo todos numa aldeia. E se a moda é também a dita globalização, então tenho esperança de que essa coisa ainda um dia me vá permitir estar na Tailândia, ir a um desses restaurantes de fast food e pedir uma MacAçorda ou umas MacMigas para matar saudades da santa terrinha.
A moda mais recente foi a do Charlie. Mas, ao que parece, já passou e o que muitos querem agora é despachar radicais islâmicos, porque eles atiram bombas e matam pessoas, porque estão em todo o lado, graças aos tentáculos de um polvo enorme e implacável. E há outras modas que a ética profissional me obriga a calar e a guardar para quando estiver reformado e me dê ao luxo de escrever as minhas memórias como professor de carreira.
Cheguei a este momento do texto com a narina esquerda levemente mais aberta do que a direita, sinal de irritação iminente. Isto porque as modas, todas as modas, têm o condão de me irritar. Porque obrigam à carneirada, ao seguidismo, à idiotice, à despersonalização. E não há coisa pior como a despersonalização. Ou a idiotice. Custo a acreditar como pode haver pessoas que embarcam nelas com a maior das facilidades, sem sequer reflectirem se é, de facto, aquilo que querem para a vida.
Mas há uma moda (e aqui é que bate a coisa), velha como o mundo, que a minha santa terrinha, tal como as terrinhas com a mentalidade da minha santa terrinha (que eu amo e defendo de todo e qualquer infiel) faz gáudio em alimentar: a moda de muita gente, deles e delas, se meter na vida de quem lhes apetece. Isto é que me deixa fora de mim. Mas sei que é um vício de tal forma arreigado que não há maneira de nos livrarmos dele. Falar deste ou daquele, da vizinha, do vizinho, do padeiro, do professor, do jardineiro, do empregado desta ou daquela loja, dar palpites sobre a sua vida, sobre o que não fez e o que devia ter feito, sobre a mulher, o marido, a família, os filhos, o cão e o periquito gay é mais do que uma moda. É um desporto. Um divertimento. Um motivo para apostas e tira-teimas. Um passatempo de gente inútil e com mais areia no cérebro do que aquela a perder de vista nas praias deste país.
A melhor receita para elas seria, por exemplo, arranjar uma vida própria, um namorado ou uma namorada, para estarem entretidinhos, um cão, um gato ou mesmo um periquito, independentemente das opções sexuais da ave. Ou, então, ir até à Casa dos Segredos.
Isso ainda era pouco. No fundo, no fundo, eu até sei onde elas deviam de ir.



In "O Montemorense", Fevereiro de 2015




quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Não sou Charlie



Deixar passar em claro a oportunidade de escrever sobre o assunto mais comentado da actualidade é ignorar o óbvio e desiludir os meus 10 leitores. Portanto, aqui vai.
Condeno sem reservas o ataque obsceno à redacção da Charlie Hebdo, uma revista satírica francesa que fazia (e vai continuar a fazer) as delícias dos seus leitores, com caricaturas fortes, sobretudo de personalidades ou entidades ligadas à religião. Apesar deste meu propósito, não sou o tal Charlie. Assumindo esse facto, tal como milhões assumiram o contrário, escrevi numa rede social “Je ne suis pas Charlie”, contrariando o slogan com que o mundo acordou pouco depois do atentado. Escrevi e logo escreveram a seguir o que lhes ia na alma, tornando o meu Mural num verdadeiro atentado à minha própria liberdade de expressão.
Por aqui se vê que é profundamente difícil discutir esta temática sem tentar perceber primeiro até onde pode ir o limite do humor e da liberdade, qual a delimitação da fronteira em relação à caricatura mordaz e violenta, e até se é possível usar de bom senso antes de se publicar seja o que for. Pois é, dirão muitos, o bom senso é uma cerca mascarada contruída à volta do nosso cérebro e onde se fecha a cadeado a democracia, a liberdade de expressão e a criatividade. Proceder a uma auto-censura prévia em relação ao que publicar é aceitar, irrevogavelmente, a limitação da nossa própria existência como seres pensantes e cidadãos do mundo.
Mas quem pode ser melhor ou maior cidadão do mundo? Não é, tenho a certeza, quem carrega cartazes e frases nas camisolas e na testa a dizer “Je suis Charlie” até à exaustão e a roçar o vulgar. Também não será aquele que, no cantinho do seu sofá, este já moldado ao corpo pela habituação, ignora a ameaça gigante que se repetiu recentemente, a meia dúzia de quilómetros da nossa casa, e cuja primeira versão aconteceu em Nova Iorque, no dia 11 de Setembro de 2001. Deixar que os nossos pensamentos sejam controlados por radicais, seja de que religião ou partido for, é um passo para a criação de uma sociedade totalitária, de terror e em guerra permanente. E não há religiões algumas que possam afirmar-se inocentes nesta matéria. Recordemos que noutros tempos, de igual infeliz memória, também a Igreja de Roma agiu de forma brutal contra quem pensava de outro modo. Também, mais recentemente no friso temporal, as notícias sobre Salazar eram sempre dadas no pretérito perfeito, à luz de uma certa religiosidade absurda: “No dia 2 de Outubro, sua Ex.ª, o Presidente do Conselho, ESTEVE na zona onde nasceu. Visitou a prima e a antiga empregada da casa...” (Este é um dos motivos por que lhe chamavam o “Esteves”). É que assim, com jornalistas domesticados a rigor, evitavam-se males maiores, como atentados, slogans despropositados ou manifestações espontâneas de desagravo a sua Ex.ª. Agir sem medo mas com a inteligência necessária para não cair no extremo oposto será, provavelmente, a uma única atitude possível.
Os que escrevem ou desenham em jornais sabem como é penoso, e contra a nossa natureza, teclar apenas o que os editores pretendem, de acordo com orientações governamentais ou determinados princípios religiosos ou morais. Quando, há uns bons anos, comecei a escrever na “Folha de Montemor” ou aqui, nesta coluna, ninguém me perguntou a cor da minha religião nem os temas que iriam ser alvos das minhas análises-mais-ou-menos-populares. Para entender a democracia e a liberdade não preciso de ser Charlie, nem de defender os ideais de um deus ou de um líder político. E é por isso que, ainda hoje, continuo a escrever. Porque não sou Charlie. Tenho ideias próprias e não gosto, não quero, não preciso que me mandem ser seja quem ou o que for.
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Então, como é? Quinze dias depois daquelas mortes injustas, bárbaras e inesquecíveis, continuam a ser todos Charlie? Ou já estão mais calminhos? É que os caricaturistas continuam a trabalhar e os islamistas estão atentos. Estes e outros radicais... que podem surgir de onde menos se espera. Mas nós, os ocidentais, só estaremos atentos (caso sobrevivamos) depois de uma bomba cair na nossa sala de estar, ao lado da chaise longue, a partir da qual enviamos mensagens e comentários incendiários para as redes sociais, sem, muitas vezes, ousar pôr o pé na rua. Mas esse gesto, caros leitores, também pode ser uma forma, não menos violenta, de terrorismo. Mas nunca deixem de escrever e de desenhar! Façam-no sempre! Mas assumam que tudo o que se escreve e desenha, para além de poder alertar para os problemas do nosso tempo, é capaz também de conduzir a consequências graves, resultado de gestos criminosos impossíveis de controlar.

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Já repararam, decerto, que o autor destas pobres linhas continua firme e irredutível a utilizar a grafia correcta da língua portuguesa. E porquê? Porque o dito acordo ortográfico é uma perfeita estupidez inventada por um bando de terroristas idiotas. Grupo ao qual jamais pertencerei. Nem com uma kalashnikov apontada. Je ne suis pas idiot!

In "O Montemorense", Janeiro de 2015

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

José Sousa, Património Material do Estabelecimento Prisional de Évora



Enquanto não for a julgamento, ou enquanto não for libertado, se provada ilegal a sua prisão preventiva, o cidadão José Sócrates Pinto de Sousa continuará em Évora, cidade que se transformou ultimamente num verdadeiro circo de celebridades que desfilam direitos ao Estabelecimento Prisional para “visitar o amigo”. E não só, direi eu. Estas páginas desassossegadas que vive a pacata cidade, e aquele bairro em particular, são resultado do desejo frenético de poderem, todos os que por ali passam, bandarilhar as câmaras e os jornalistas de plantão, dizendo que não dizem coisas que lhes apetece dizer. E os jornalistas gritam por elas, perguntam, repetem as perguntas, quase choram só para ouvir um sim ou um não das sagradas bocas que guardam para si o que realmente viram, o que realmente falaram, o que realmente sentem e sabem de toda esta embrulhada. 
O ex-primeiro não é o único em preventiva pelos motivos que alegadamente para ali o enviaram. Oxalá fosse. Muitos outros vivem a mesma situação sem que haja um mínimo interesse dos media em contar as suas estórias. Claro que Sócrates é um protagonista diferente. Quer queiramos, quer não, ele não é um cidadão comum. É o homem, o político, que esteve à frente dos nossos destinos um bom par de anos. E que, a ser verdade, procedeu de forma pouco clara e pouco digna enquanto cidadão, ao mesmo tempo que mandava aprovar os PECs mais famosos da nossa história económica, profetas que anunciaram a vinda a Portugal da tal Troika que nos deixou de tanga. 
Quer seja ou não culpado, por causa do cidadão que é neste momento património da justiça não nos será possível, daqui em diante, ouvir os políticos que nos governam sem esboçar um sorriso imediato de suspeição e descrédito. “Uhm!! Achas que este também vai fazer companhia ao nosso ex-primeiro?”, pergunta-me a fofa quase todos os dias à hora dos telejornais. “É que, se ser Património é coisa positiva, é absolutamente natural que muitos queiram partilhar com o Zé esta tão sublime honra.” E acrescentou com ar de censura: “Então, estás a acabar o texto e não desejas as Boas Festas aos teus 12 leitores?”
Claro que sim, claro que sim: BOAS FESTAS para todos!

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Volta




Somos uma data de órfãos à deriva, no mar alto. Sem cartas de marear nem astrolábios. Em naus que se tornam cada vez mais frágeis, tormenta após tormenta. Somos uma pálida sombra dos navegantes quinhentistas, porque esses tinham Gamas e Cabrais que sabiam muito bem para onde queriam ir. Hoje, não existem rotas definidas. Nem líderes de confiança. Porque são eles os primeiros a esconder a verdade, a ignorar o óbvio, numa atitude sádica de quem gosta de fazer e de ver sofrer. 
Somos uma data de órfãos à deriva. O país que nos fez recusa-nos portos de abrigo e os políticos de hoje querem-nos lá fora para que desçam os índices de desemprego. É urgente a justiça. É urgente a esperança e o grito: “Terra à vista”. Fazem-nos falta políticos maduros, conscientes, respeitadores, justos, democráticos. Queremos uma liderança honesta e transparente. É urgente o nascimento de novos Gamas e Cabrais que nos conduzam de volta ao Cais das Colunas, onde nos esperam as nossas mulheres e os nossos filhos, as nossas mães e os nossos pais que julgavam nunca mais poder tocar-nos no rosto. Onde está essa liderança? Onde o sacrifício de quem, de peito aberto, defende os que mais precisam? Como se continua tacitamente a aceitar os políticos que viraram o país ao contrário? O que acontece aos detentores de cargos públicos que violam a lei e desaparecem de circulação até que o povo se esqueça deles? Quem é preso neste país? Quem é confrontado com as autoridades e os tribunais? O político corrupto? O gestor público que se deixou tentar por umas férias um pouco mais exóticas? Nááááá!!!! O padeiro que roubou setenta cêntimos ao patrão. A mulher que desviou umas maçãs no supermercado para dar ao filho. O pai que estacionou em local proibido porque tinha de levar, com urgência, a filha ao hospital. 
Em Julho de 1970, falecia um homem que tinha governado o país com mão de ferro durante quase meio século. A queda de uma cadeira tinha-lhe sido fatal. Morreu pobre e quase sozinho. Cometeu erros terríveis, fez sofrer gerações, usou Deus e a Igreja para justificar muitas das suas decisões mesquinhas e estranguladoras. Espalhou a insegurança e o terror nas famílias e nunca quis entender o que era a democracia. Instigou a censura, limitou a liberdade expressão e mandou torturar e matar. Contudo, nunca desviou dinheiros públicos em proveito próprio ou dos poucos amigos que tinha. 
Nestes tempos de modernidade, sentimo-nos roubados todos os dias. Todos os meses os cortes nos salários são justificados nos telejornais através de percentagens extraterrestres, de contabilidades estranhas, de situações ainda mais esquisitas, com palavras enleadas que já não convencem ninguém. E eles lá continuam a decidir quem vive e quem morre, quem tem casa e quem vai viver para a rua, quem tem emprego e quem vai ser despedido. Somos marionetes que eles manipulam, consoante o dinheiro que precisam para esconder erros gravíssimos de gestão pública, para disfarçar manobras ínvias que não querem ver esclarecidas, para, tapados com capas de mártires e de heróis, nos convencerem das suas extraordinárias boas intenções. 
Desisti de acreditar. Abril nunca me pareceu tão longe. Hesito antes de terminar este grito, mas vou escrever o que nunca pensei vir a escrever um dia: volta António, estás perdoado. 


João Luís Nabo - In "O Montemorense", Novembro 2014

sábado, 15 de novembro de 2014

Entretengas



Sabe bem esta questão das epidemias. O povo sempre deixa descansar um pouco outras formas de distracção e os políticos agradecem. O Ébola e a Legionella estão agora no centro das conversas e das preocupações dos portugueses. Nem é preciso pensarmos muito na questão para verificarmos que basta um problema deste género, bem como uma forte chuvada na Baixa de Lisboa, para sentirmos a nossa vulnerabilidade, para tomarmos consciência da nossa fragilidade enquanto cidadãos desta espécie de país. As vítimas da bactéria mais famosa do momento aumentam todos os dias, as explicações dos responsáveis pela Saúde multiplicam-se mas as soluções (se as há, na verdade) teimam em não dar resultados visíveis. 
O nosso mundo é um berlinde azul e verde que nos aproxima todos uns dos outros. Para o bem e para o mal. Porque a África do Ébola é já ali, ao virar da esquina. E Vila Franca fica mesmo no outro lado da nossa rua.
E enquanto estas questões nos vão entretendo, o caminho dos políticos está um pouco mais facilitado para outros golpes e contra-golpes e, com muita pena de todos, Fátima, Fado e Futebol ficam, até ver, relegados para segundo plano. 
Somos mesmo uma data de órfãos à deriva, com Cavaco Silva, impávido e sereno, na varanda do Palácio de Belém, sorrindo virginalmente, ao ver as naus que se afundam lentamente no Tejo.


João Luís Nabo, in "O Montemorense", Novembro de 2014

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

terça-feira, 14 de outubro de 2014

O Princípio de Peter Passos

         

            Estamos sempre a falar e a escrever sobre a mesma coisa nesta altura do ano. O que não é bom sinal. 
          Educação, Escola, Professores, Ministério da Educação, Ministro da Educação. Devia haver um elo que unisse todos estes conceitos. Supunha-se que, para haver Educação, devia haver uma Escola servida por Professores que, estando ligados ao Ministério da Educação, conseguissem respeitar o seu Ministro mais as suas estranhas e ínvias decisões. Mas o seu Ministro não quer ser respeitado. Não quer, porque acha que o caos que neste momento reina no seu Ministério é por culpa dos serviços, dos computadores, das fórmulas matemáticas que regem os concursos, da Internet, dos Professores que se recusam a fazer provas de avaliação após inúmeros anos de serviço entre outras minudências, vielas e travessas. 

          A questão coloca-se: estará Nuno Crato consciente do mal que as suas políticas estão a fazer à Educação deste país? Eu acho que está. E os superiores de Crato também estão. O que falta naquela gente toda é coragem e vontade política para alterar o sistema de contratação. Como escreveu recentemente José Manuel Fernandes (JMF) no Observador online, a solução para evitar tais confusões seria a atribuição às escolas e aos directores de uma autonomia total para contratar atempadamente os professores considerados pelo director adequados para a equipa. O que JMFnão prevê é o pôr em prática da tradição que já vem do tempo de D. Afonso Henriques, que Deus o tenha: contratar os amigos e deixar de fora os inimigos. Portanto, ainda não será por aí que a coisa se resolve.

          E recoloca-se a questão: não faltará naquela gente um sentimento de respeito pelos alunos, pelos pais e pelos professores? Falta. Mais: o que aquela gente não tem é um pingo de vergonha para, assumindo os graves erros perpetrados, enrolarem a trouxa e marcharem. Há, contudo, uma conclusão que é a única coisa que se aproveita no meio desta trapalhada toda: a verificação constante e diária do Princípio de Peter, que diz: “Numa hierarquia, qualquer funcionário tem tendência para subir até ao nível máximo de incompetência.” 

          Estamos, sem dúvida rodeados de incompetentes que sabem que o são mas que se manifestam diariamente como mártires - trespassados pelas setas da incompreensão e da cabala política - de um povo que não compreende o seu esforço em prol da salvação da pátria. E parece-me, pelo que tenho visto, ouvido e lido, que o Princípio de Pedro Passos transmite uma imagem mais clara do conceito original... do que o próprio original.

          É por estas e por outras que prefiro ir ao fundo de vez a ser prolongadamente torturado por gente daquela classe sem classe.


João Luís Nabo
In "O Montemorense", Outubro de 2014



quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Mais uma ideia... da fofa




         

          Fala-se por aqui, de vez em quando, de Passos Coelho. Pois a fofa anda preocupada com ele. Pelo menos, assim pareceu. Disse-me ela ontem, antes de adormecer, já com a voz entaramelada: “E se o coitadinho do Passos for obrigado a devolver o dinheiro que alegadamente ganhou e não devia ter ganho quando era deputado de nação? Como é que ele se vai arranjar?”

        Não respondi, porque sei de antemão que, naquela fase do dorme-não-dorme, ela, com a rabugice do sono, nunca me dá razão. Mas fiquei a pensar que o primeiro-ministro, com a polémica que já o enlameou, devia ter reagido assim que o denunciaram. Que deixou passar muito tempo até que esclarecesse (ou não) toda a situação relacionada com a sua ligação à Tecnoforma. Que houve tempo de sobra para muita especulação e que esta trouxe ao de cima muitas verdades e muitas mentiras. E, depois, aquela coisa da prescrição dos alegados crimes funciona como a absolvição do padre após a confissão dos pecados. Há perdão, pois há, mas o mal está feito.

          Quando comecei a sentir o pensamento cada vez mais longe de Passos, dos seus amigos e da sua falta de transparência, ouvi a fofa, numa lamúria, já mais para lá do que para cá: “Já sei: o nosso primeiro-ministro podia muito bem arranjar um part-time como primeiro-ministro das Berlengas. Sempre sacava uns euros extra, caso fosse preciso devolver alguma coisa!”
         Depois disto, ouvi um ronronar suave e pausado, sinal de que tinha, finalmente, partido nos braços de Morfeu. Aleluia.





quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Para a minha Mãe (in memoriam)


Do tempo e das vozes

     Fervilhar.
É o verbo que se passeia pela memória dos dias quando me olho, através do tempo, a atravessar o jardim com a minha mão esquerda, pequenina, embrulhada na da minha e. Cinco anos de quotidianos felizes a ansiar pelos sábados de manhã para agarrar no cesto e partir à descoberta neste templo onde as estações do ano comandam as modas e os paladares de quem lá entra.
       Fervilhar.
É som que o é som. É um sentimento que começa ainda o dia não passa de duas, talvez três, pinceladas de madrugada. Primeiro, vozes soltas, meio sozinhas ainda, neste espaço vazio, gemendo, impando, dando ordens… Depois, mais vibrantes, frescas, timbres em contraponto dos vendedores que, num aumento gradual, ali misturam os duros dias ao sol, à chuva, ao frio, no campo, na lota, no matadouro, com as dores e os caprichos das donas de casa, as exigências das avós que vão à hortaliça para a sopa dos netos, os pedidos das criadas que não querem ouvir ralhar as patroas…
É um labirinto de cores, um caleidoscópio de caras. De novidades iguais e diferentes. De sorrisos, de esgares, da vida de todos os dias. Onde me perdia vezes sem conta, porque um quadrado confunde toda a gente, mesmo que se visite amiúde e se conheça cada erva que nasce por entre as lajes de granito pisado mil vezes. Estranho este labirinto, que não tem nem corredores, nem passagens secretas, espaço aberto onde todos sabem de todos, porque todos ouvem todos. Mas onde me perdia constantemente… Acabando por sair sempre pela porta por onde não entrara…
Talvez o lago, ao centro uma taça de rmore, com uma coluna ao meio a equilibrar uma bola fantástica a apontar para o azul, quando o ―, fosse responsável por tal perda de referência. A perseguição aos peixes vermelhos, que se bandeavam nas águas claras e frias, era sempre o primeiro e único exercício físico possível naquele lugar. Depois de umas quantas voltas, ora para um lado, ora para o outro, para não entontecer, eis que acabava perdido, sem saber onde tinha pousado o cesto, sem saber da minha e, sempre atenta no olhar e nas palavras, entretida a falar com a D. Carlota do Julinho dos presépios, dos comboios eléctricos e dos balões coloridos, mal pairavam os primeiros acordes do Natal.
E, quando, a troco de um tostão, os vendedores me enchiam o pequeno cesto com duas ou três cenouras, três ou quatro vagens de feijão-verde, um molho de salsa e outro de hortelã, que deixavam um rasto de sabores adivinhados, eu sentia-me o petiz mais importante do planeta, talvez o mais feliz do universo.
Agarro com força estas memórias, como se fossem a o da minha e, porque me sinto protegido, aconchegado, fascinado com o tal barulho das vozes que continuam a misturar-se em contracantos, salmodias e pregões. Sem nesse tempo perceber porquê, sentia que aquelas melodias iam fazer parte da minha vida e que se prolongariam muito mais do que durante aquela breve meia hora matinal. depois vim a entender o poder daquelas vozes, mais puras, mais belas, mais sinceras e convincentes do que muitas que mais tarde, por gosto ou missão, viria a escutar nas mais divulgadas oratórias, nas mais sublimes árias, em tantas óperas, densas e dramáticas, e no esplendor das cantatas de um tal senhor Bach.
A minha mãe continua fiel às orações da manhã:
Quanto é este molho de espinafres?
E o carapau do alto? pergunta ainda, de banca em banca, porque a tradição vive naqueles olhos e naquela vontade sábia de continuar simples, a gostar das coisas simples. Sei que ainda me a o, como se eu, homem feito, diminuísse de tamanho todos os dias, pegasse no cesto que ela me dera e, de moeda em punho, fosse eu o responsável pelas ervas de aroma que ainda hoje lhe enchem a casa de cheiros e de sonhos…

Nabo, João Luís, Outros Contos de Vila Nova. Editorial Tágide, Lisboa, 2010





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